Compreendo que não temos o direito de crucificar os nossos antepassados históricos pelos conceitos e definições de saúde prescritos até o século XIX. Esses conceitos não foram equivocados e sim adequados para fazer frente ao momento histórico. Atualmente, entretanto, considero inaceitável qualquer definição de saúde que tenha caráter reducionista e que preveja ação pontual e localizada enquanto essência. Essa foi a mácula dos conceitos formulados para saúde nos períodos anteriores a 1948, quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) com muita sapiência formulou um conceito sabidamente intransponível, mas que serve de lastro para guiar a humanidade em busca do melhor fazer em saúde. O completo bem-estar físico, mental e social proposto no conceito da OMS é inatingível e sabemos disso, até porque não temos condições de mensurar o “completo bem-estar” físico, mental e social. E mesmo que existisse uma escala de mensuração desses atributos, os três teriam que ocorrer concomitantemente para podermos rotular um indivíduo ou uma comunidade como saudável nos limites do conceito da OMS.
Marc Lalonde (1974), por sua vez, foi brilhante na complexificação do conceito de saúde proposto pela OMS (1948) ao sinalizar aspectos da biologia humana, o meio ambiente, o estilo de vida e a organização da assistência, como fundamentais para o atingimento do inatingível “bem-estar”. E dos quatro aspectos apontados por Lalonde (1974) sou de opinião que os aspectos relacionados à biologia humana são os mais complexos e de certa forma transversalizam os demais. Isso porque a constituição de um organismo (nesse caso o organismo humano) possui uma série de variáveis que não estão sob o controle do homem (pelo menos por enquanto!) e que são determinadas, essencialmente, pela forma de reprodução (reprodução sexuada) que praticamos para fins de perpetuação da nossa espécie.
Os aspectos intrínsecos à biologia humana explicam, por exemplo, porque nenhuma enfermidade ocorre de forma súbita, não importando se é de etiologia infecciosa ou afecciosa, se é aguda ou crônica. A literatura científica oferece alguns modelos que ajudam a entender o processo de adoecimento nas populações humanas e todos eles fazer referência a uma etapa pré-clínica e, portanto, sem manifestação aparente de sinais ou sintomas, e uma etapa clinica, quando sinais e sintomas já podem ser percebidos ou detectados. No entanto mesmo considerando uma mesma doença - e até mesmo um mesmo indivíduo - é possível encontrar importantes variações de manifestação, a depender do organismo acometido.
O fato é que o processo de adoecimento enseja multifatorialidade, que é a confluência com maior ou menor grau de sincronismo de fatores - socioeconômicos, sociopolíticos, socioculturais, psicossociais, ambientais, genéticos - que em maior ou menor proporção contribuem para o estabelecimento de um processo patológico o qual, uma vez instalado, pode ter vários desfechos que incluem cura espontânea, cronificação e morte. A dengue é um exemplo bastante ilustrativo dessa confluência multifatorial sinérgica, pois a prática cultural do armazenamento de água, aliada à falta de condições econômicas para efetuar o armazenamento seguro favorecem a reprodução do vetor que ao realizar hematofagia transfere o agente etiológico (vírus) para um organismo que, a depender de suas características genéticas, poderá inclusive morrer em função do adoecimento favorecido pelos diversos fatores que atuaram sinergicamente.
Assim, ao longo da história, a epidemiologia, apoiada na matemática e na bioestatística, desenvolveu e aperfeiçoou importantes fórmulas de tratamento de informações em saúde que, com o desenvolvimento tecnológico, sobretudo da informática, possibilitou a automação de abordagens epidemiológicas a partir do uso de indicadores. Os indicadores, portanto, são o caminho mais fidedigno para a obtenção de informações que nos permita conhecer o perfil de saúde de uma população.
Reconheço que as medidas de saúde coletiva praticadas no Brasil, atualmente, são necessárias em função do padrão epidemiológico em que ainda se encontra o país, com doenças infecciosas e parasitárias incidindo de forma importante na população, porém essas medidas são conflitantes com a discussão de um padrão de saúde pautado na promoção, pois as medidas que utilizamos servem para medir doença, de acordo com Soares (2001); Kerr-Pontes e Rouquayrol (2003) e Pereira (2006) e não saúde. E nós precisamos medir saúde! Isso fica evidente quando grafamos as principais medidas de saúde que são o coeficiente de incidência, o coeficiente de prevalência, o coeficiente de letalidade, o coeficiente de mortalidade geral, o coeficiente de mortalidade infantil, o coeficiente de mortalidade materna e o coeficiente de mortalidade por doenças transmissíveis.
O coeficiente de incidência reflete a ocorrência dos casos novos de um determinado agravo em uma comunidade, sendo fundamental para definir epidemiologicamente os eventos endemia, epidemia e pandemia. Infelizmente ainda não podemos abrir mão desse indicador e um exemplo disso é a nossa lista de doenças de notificação compulsória. O coeficiente de prevalência tem a sua compreensão atrelada ao anterior, pois nos permite estimar a quantidade de indivíduos acometidos por um agravo em uma determinada população. O coeficiente de letalidade representa a proporção de óbitos entre os casos de uma enfermidade, sendo importante para dimensionar a gravidade de uma doença para uma população. O coeficiente de mortalidade geral representa o risco de óbito de uma comunidade e quase sempre reflete o risco de morte por violência além de agravos crônicos não infecciosos (derrames, infartos, neoplasias).
Considero o coeficiente de mortalidade infantil e o coeficiente de mortalidade materna os mais sensíveis para avaliar a qualidade de vida e qualidade da atenção à saúde, respectivamente, pois eles refletem o risco de morte entre crianças nascidas vivas até completar o primeiro ano de vida e o risco de óbito por causas ligadas à gestação, parto e puerpério.
Por fim, o coeficiente de mortalidade por doenças transmissíveis que estima o risco de morte em uma população por doenças infecciosas e parasitárias. E, como sabemos possuímos algumas doenças infecciosas que em determinadas regiões do país assumem comportamento epidêmico como doença de chagas, esquistossomose, febre amarela, dengue, leishmaniose, tuberculose, meningite e hanseníase.
Não bastasse, ainda precisamos nos preparar para ofertar saúde - nos moldes sugeridos pela OMS - considerando a nova realidade demográfica brasileira que se avizinha, ou seja, a nossa pirâmide demográfica se inverte rapidamente e provavelmente daqui a 20 anos teremos a predominância da população idosa sobre a população de crianças.