Para a maioria de nós não é fácil dialogar a respeito da morte. Mas um fato é incontestável; todos que nasceram terão que morrer, não cabendo discutir acerca do mérito da morte - céu, inferno, purgatório, reencarnação, etc - por se tratar de campo extremamente complexo e que não compete à mediocridade humana desvendá-lo em vida (Plano funeral uma tacada de mestre). Nascer e morrer, portanto, são os dois extremos da condição de qualquer ser vivo e tudo o que está antes da vida e depois da morte não é de conhecimento da ciência sendo, por isso, território fértil para especulações sobretudo religiosa (Vieste do pó e ao pó voltará). Já os eventos biológicos / bioquímicos que envolvem um organismo após a morte são perfeitamente conhecidos e não há dúvidas da sua importância para a renovação e manutenção da própria vida na terra. A ciência vê um cadáver em apodrecimento como os fundamentos de um vasto e complexo ecossistema que emerge depois da morte e evolui com a decomposição. Sendo assim, longe de estar “morto”, um cadáver exposto às condições ambientais está cheio de vida.
A decomposição começa alguns minutos depois da parada cardíaca porque as células ficam privadas de oxigênio e deixam de realizar respiração celular o que resulta no aumento da acidez intracelular. Essa situação provoca um repentino aumento de produtos tóxicos dentro da célula e enzimas da própria célula começam a digerir as próprias membranas celulares vazando todo o seu conteúdo para o meio intersticial, sendo esse processo denominado autólise, ou autodigestão. Esses eventos geralmente começam no fígado, dada a grande quantidade de enzimas contidas nos hepatócitos, e no cérebro, que possui elevado nível de água em suas células. Na sequência, os demais tecidos e órgãos começam a se desmembrar. O conteúdo dos vasos sanguíneos rompidos começa a extravasar e se acumula com auxilio da gravidade, descolorindo a pele.
Esquema de eventos celulares possíveis em uma célula lesionada |
Na ausência de atividade do hipotálamo, a temperatura corporal deixa de ser regulada e fica totalmente vulnerável às condições ambientais. Sabe-se que, em vida, células musculares se contraem e relaxam graças à ação de duas proteínas filamentosas (actina e miosina), que operam em sintonia. Porém, com a paralisação das funções vitais, as células deixam de realizar respiração celular o que resulta na falta de Trifosfato de Adenosina (ATP) que é a energia necessária para a realização e manutenção das funções vitais. As células musculares, então, ficam sem energia e as atividades de contração e relaxamento das suas proteínas são interrompidas, o que faz com que o músculo fique rígido, prendendo as articulações. A consequência desse cenário é o rigor mortis — a rigidez cadavérica — começando pelas pálpebras, queixo e músculos do pescoço, antes de prosseguir ao tronco e aos membros.
Durante estes primeiros estágios, o ecossistema cadavérico consiste em grande parte nos micróbios que vivem dentro e fora do próprio organismo. Isso porque, em vida, o corpo humano e dos demais seres (animais e vegetais) hospeda uma enorme quantidade de bactérias e fungos. Esses seres que são extremamente úteis para a manutenção da saúde passam a ser decisivos no processo de degradação da matéria sem vida. Todas as superfícies do corpo oferecem condições adequadas de habitat para uma comunidade microbial especializada. De longe, a maior dessas comunidades vive no intestino, lar de trilhões de bactérias que pertencem a centenas ou milhares de espécies diferentes. Para se ter ideia dessa dimensão, estima-se que aproximadamente 90% da matéria fecal desidratada é constituída de micróbios.
A partir desse ponto, não será possível continuar sem tratar de dois temas imprescindíveis para dar sentido ao título dessa postagem. Assim, precisaremos compreender o que está envolto nos conceitos de Entropia e Ciclos Biogeoquímicos. As figuras abaixo, representativas de uma célula animal e uma célula bacteriana, serão úteis.
Esquema de célula eucarionte (célula animal) |
Esquema de célula procarionte (bactéria) |
Entropia é um conceito originário da termodinâmica que tem a finalidade de medir o grau de "desordem" ou desorganização de qualquer sistema seja ele biótico ou abiótico. No nosso caso, interessam os sistemas bióticos (vivos) e quanto maior for a desordem de um sistema vivo, maior será a sua entropia. Preciso informar, também, que para manter um sistema em baixo nível de entropia, ou seja, organizado, requer o dispêndio de muita energia. Sem energia para a sua manutenção a tendência do sistema vivo é atingir o maior grau possível de desordem. No caso dos sistemas bióticos a energia a que me refiro é originada das molécula de ATP montadas pelas células mediante a realização de respiração celular.
Para um organismo unicelular, a exemplo de uma bactéria, a sua única célula representa o nível máximo de organização e, portanto, o nível mínimo de entropia. Para um organismo multicelular, como por exemplo o organismo humano, é preciso altas concentrações de energia para manter unidas e em sintonia as aproximadamente sete trilhões (7.000.000.000.000) de células que constituem o nosso organismo. Com a morte, cessa a continua produção de energia e tem início a degradação do sistema orgânico até chegar ao nível mais elementar que são os átomos que foram "forçadamente" mantidos unidos na constituição das células, tecidos, órgãos e sistemas que integram um dado organismo pluricelular. Surgem então a questão: O que acontece com esses átomos que são liberados em função do desmonte celular?
A resposta para a questão está dentro da compreensão dos Ciclos Biogeoquímicos. Termo utilizado para designar a existência de movimento cíclico de elementos químicos que formam os organismos vivos (biótico) e o ambiente geológico (abiótico). De acordo com esta conclusão, em qualquer dos ciclos biogeoquímicos (Nitrogênio, Água, Oxigênio, Fósforo, Cálcio, Carbono e Enxofre) existe a retirada do elemento ou substância de sua fonte, sua utilização por seres vivos e posterior devolução para a fonte; confirmando assim a teoria de Lavoisier de que "Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma".
A maioria de nós preferiria não imaginar o que acontece com o nosso corpo depois que morremos, mas este processo faz nascer novas formas de vida de maneiras inesperadas. A afirmação é de Moheb Costandi, Neurobiólogo Molecular e escritor de ciência (colaborador da "Fundação Dana" http://www.dana.org/ na investigação do cérebro humano por meio de doações, publicações e programas educacionais).
Portanto um cadáver, seja animal ou vegetal, em apodrecimento, representa os fundamentos de um vasto e complexo ecossistema que emerge depois da morte e evolui com a decomposição. Considerando um corpo humano padrão, estima-se, que consista em 50 a 70% de água, e cada quilograma de massa corporal seca libera 32g de nitrogênio, 10g de fósforo, 4g de potássio e 1g de magnésio no solo. Inicialmente, isso mata parte da vegetação abaixo e ao redor do corpo, possivelmente por causa da toxicidade do nitrogênio ou por causa dos antibióticos encontrados no corpo, que são secretados pelas larvas de insetos conforme elas se alimentam dos tecidos. Mas, depois, a decomposição é benéfica ao ecossistema pois a abundância de nutrientes vigora ou revigora a vegetação que se torna mais diversa e disponível para incorporação pelos seres que estão na base da cadeia alimentar e a transferência dos nutrientes se estende aos demais níveis tróficos, favorecendo a geração e manutenção de novas formas de vida.